Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplação da sereníssima e muito católica rainha Lianor, nossa senhora, e representado por seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei Manuel, primeiro de Portugal deste nome.
Começa a declaração e argumento da obra. Primeiramente, no presente auto, se figura que, no ponto que acabamos de espirar, chegamos subitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéis que naquele porto estão, scilicet, um deles passa para o paraíso e o outro para o inferno: os quais batéis tem cada um seu arrais na proa: o do paraíso um anjo, e o do inferno um arrais infernal e um companheiro.
O primeiro interlocutor é um Fidalgo que chega com um Paje, que lhe leva um rabo mui comprido e uma cadeira de espaldas. E começa o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha.
Diabo — À barca, à barca, houlá!
que temos gentil maré!
— Ora venha o carro a ré!
Companheiro — Feito, feito!
Diabo — Bem está!
Vai tu muitieramá [nesta hora má],
e atesa [retesa] aquele palanco
e despeja aquele banco,
para a gente que virá.
À barca, à barca, hu-u!
Asinha [rápido] , que se quer ir!
Oh, que tempo de partir,
louvores a Belzebu!
— Ora, sus! que fazes tu?
Despeja todo esse leito!
Companheiro — Em boa hora! Feito, feito!
Diabo — Abaixa aramá [infeliz] esse cu [bunda]!
Faze aquela poja lesta [arrume aquela corda]
e alija aquela driça.
Companheiro — Oh-oh, caça! Oh-oh, iça, iça!
Diabo — Oh, que caravela esta!
Põe bandeiras, que é festa.
Verga alta! Âncora a pique!
— Ó poderoso dom Anrique [Henrique],
cá vindes vós?... Que cousa é esta?...
Vem o Fidalgo e, chegando ao batel infernal, diz:
Fildalgo — Esta barca onde vai ora,
que assim está apercebida?
Diabo — Vai para a ilha perdida,
e há-de partir logo ess'ora.
Fildalgo — Para lá vai a senhora?
Diabo — Senhor, a vosso serviço.
Fildalgo — Parece-me isso cortiço...
Diabo — Porque a vedes lá de fora.
Fildalgo — Porém, a que terra passais?
Diabo — Para o inferno, senhor.
Fildalgo — Terra é bem sem-sabor.
Diabo — Quê?... E também cá zombais?
Fildalgo — E passageiros achais
para tal habitação?
Diabo — Vejo-vos eu em feição [o senhor tem cara]
para ir ao nosso cais...
Fildalgo — Parece-te a ti assim!...
Diabo — Em que esperas ter guarida?
Fildalgo — Que leixo [deixo] na outra vida quem
reze sempre por mim.
Diabo — Quem reze sempre por ti?!..
Hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi!...
E tu viveste a teu prazer,
cuidando cá guarnecer
por que rezam lá por ti?!...
Embarca — ou embarcai...
que haveis de ir à derradeira!
Mandai meter a cadeira,
que assim passou vosso pai.
Fildalgo — Quê? Quê? Quê? Assim lhe vai?!
Diabo — Vai ou vem! Embarcai prestes!
Segundo lá escolhestes,
assim cá vos contentai.
Pois que já a morte passastes,
haveis de passar o rio.
Fildalgo — Não há aqui outro navio?
Diabo — Não, senhor, que este fretastes,
e primeiro que expirastes
me destes logo sinal [pagou-me o sinal].
Fildalgo — Que sinal foi esse tal?
Diabo — Do que vós vos contentastes.
Fildalgo — A est'outra barca me vou.
Hou da barca! Para onde is?
Ah, barqueiros! Não me ouvis?
Respondei-me! Houlá! Hou!...
(Pardeus, aviado estou! [estou bem arranjando]
Cant'a isto é já pior...)
Oue jericocins, salvador! [esses imbecis não me escutam]
Cuidam cá que são eu grou?
Anjo — Que quereis?
Fildalgo — Que me digais, pois parti tão sem aviso,
se a barca do Paraíso
é esta em que navegais.
Anjo — Esta é; que demandais?
Fildalgo — Que me leixeis embarcar.
Sou fidalgo de solar,
é bem que me recolhais.
Anjo — Não se embarca tirania
neste batel divinal.
Fildalgo — Não sei porque haveis por mal
que entre a minha senhoria...
Anjo — Para vossa fantasia
mui estreita é esta barca.
Fildalgo — Para senhor de tal marca
nom há aqui mais cortesia?
Venha a prancha e atavio!
Levai-me desta ribeira!
Anjo — Não vindes vós de maneira
para entrar neste navio.
Essoutro vai mais vazio:
a cadeira entrará
e o rabo [manto] caberá
e todo vosso senhorio.
Ireis lá mais espaçoso,
vós e vossa senhoria,
cuidando na tirania
do pobre povo queixoso.
E porque, de generoso,
desprezastes os pequenos,
achar-vos-eis tanto menos
quanto mais fostes fumoso [vaidoso].
Diabo — À barca, à barca, senhores!
Oh! que maré tão de prata!
Um ventozinho que mata e valentes remadores!
Diz, cantando:
Vós me veniredes a la mano,
a la mano me veniredes.
e nos veredes
peixes en las redes
Fildalgo — Ao Inferno, todavia!
Inferno há i para mi?
Oh triste! Enquanto vivi
não cuidei que o i havia [não me toquei do que haveria depois]:
Tive que era fantasia!
Folgava ser adorado,
confiei em meu estado
e não vi que me perdia.
Venha essa prancha!
Veremos esta barca de tristura.
Diabo — Embarque vossa doçura,
que cá nos entenderemos...
Tomarês um par de remos,
veremos como remais,
e, chegando ao nosso cais,
todos bem vos serviremos.
Fildalgo — Esperar-me-ês vós aqui [me esperem aqui],
tornarei à outra vida
ver minha dama querida
que se quer matar por mi.
Diabo — Que se quer matar por ti?!...
Fildalgo — Isto bem certo o sei eu.
Diabo — Ó namorado sandeu [louco],
o maior que nunca vi!...
Fildalgo — Como pod'rá isso ser,
que m'escrevia mil dias?
Diabo — Quantas mentiras que lias,
e tu... morto de prazer!...
Fildalgo — Para que é escarnecer,
quem nom havia mais no bem? [não havia amor maior do que esse]
Diabo — Assim vivas tu, amém,
como te tinha querer!
Fildalgo — Isto quanto ao que eu conheço...
Diabo — Pois estando tu expirando,
se estava ela requebrando
com outro de menos preço.
Fildalgo — Dá-me licença, te peço,
que vá ver minha mulher.
Diabo — E ela, por não te ver,
despenhar-se-á dum cabeço! [topo de um monte]
Quanto ela hoje rezou,
entre seus gritos e gritas,
foi dar graças infinitas
quem a desassombrou [quem a socorreu na dor].
Fildalgo — Cant'a ela, bem chorou!
Diabo — Nom há i choro de alegria?..
Fildalgo — E as lástimas que dizia?
Diabo — Sua mãe lhas ensinou...
Entrai, meu senhor, entrai:
Ei la prancha! Ponde o pé...
Fildalgo — Entremos, pois que assim é.
Diabo — Ora, senhor, descansai,
passeai e suspirai.
Em tanto virá mais gente.
Fildalgo — Ó barca, como és ardente!
Maldito quem em ti vai!
Diz o Diabo ao Moço da cadeira:
Diabo — Nom entras cá! Vai-te d'i!
A cadeira é cá sobeja [exagero];
cousa que esteve na igreja
nom se há-de embarcar aqui.
Cá lhe darão de marfim,
marchetada de dolores,
com tais modos de lavores,
que estará fora de si...
À barca, à barca, boa gente,
que queremos dar à vela!
Chegar ela! Chegar ela!
Muitos e de boamente!
Oh! que barca tão valente!
Vem um Onzeneiro, e pergunta ao Arrais do Inferno, dizendo: