Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas, e chega ao batel infernal, e diz:
Sapateiro — Hou da barca!
Diabo — Quem vem i?
Santo sapateiro honrado,
como vens tão carregado?...
Sapateiro — Mandaram-me vir assim...
E para onde é a viagem?
Diabo — Para o lago dos danados.
Sapateiro — Os que morrem confessados
onde têm sua passagem?
Diabo — Nom cures de mais linguagem!
Esta é a tua barca, esta!
Sapateiro — Renegaria eu da festa
e da barca da barcagem!
Como poderá isso ser,
confessado e comungado?!...
Diabo — Tu morreste excomungado:
Nom o quiseste dizer.
Esperavas de viver,
calaste dous mil enganos...
Tu roubaste bem trint'anos
o povo com teu mester.
Embarca, era má para ti,
que há já muito que t'espero!
Sapateiro — Pois digo-te que nom quero!
Diabo — Que te pês [pese], hás de ir, si, si!
Sapateiro — Quantas missas eu ouvi,
nom me hão elas de prestar?
Diabo — Ouvir missa, então roubar,
é caminho per'aqui.
Sapateiro — E as ofertas que darão?
E as horas dos finados?
Diabo — E os dinheiros mal levados,
que foi da satisfação?
Sapateiro — Ah! Nom praza ò cordovão,
nem à pura da badana, [jargão da sapataria]
se é esta boa traquitana
em que se vê Jan Antão! [em qual trapalhada se meteu João Antão? [nome do sapateiro]
Ora juro a Deus que é graça!
Vai-se à barca do Anjo, e diz:
Hou da santa caravela,
poderês levar-me nela?
Anjo — A carrega t'embaraça. [te atrapalha]
Sapateiro — Nom há mercê que me Deus faça?
Isto sequer irá.
Anjo — Essa barca que lá está
Leva quem rouba de praça.
Oh! almas embaraçadas!
Sapateiro — Ora eu me maravilho
haverdes por grão peguilho [ser um grande estorvo]
quatro forminhas cagadas
que podem bem ir chantadas [enfiadas]
num cantinho desse leito!
Anjo — Se tu viveras direito,
Elas foram cá escusadas.
Sapateiro — Assim que determinais
que vá cozer ò Inferno?
Anjo — Escrito estás no caderno
das ementas infernais.
Torna-se à barca dos danados, e diz:
Sapateiro — Hou barqueiros! Que aguardais?
Vamos, venha a prancha logo
e levai-me àquele fogo!
Não nos detenhamos mais!